segunda-feira, fevereiro 09, 2004

Jornal Publico ( www.publico.pt)

Bolívia Exige Antigo Território ao Chile
Por FERNANDO SOUSA
Domingo, 08 de Fevereiro de 2004

O levantamento popular de Outubro na Bolívia não levou só à substituição do Presidente Sánchez de Lozada por Carlos Mesa. Reacendeu também o contencioso fronteiriço com o vizinho Chile, com La Paz a exigir de volta os territórios que perdeu na Guerra do Pacífico, e a mobilizar nesse sentido toda a sua diplomacia, e Santiago a responder que o que ganhou na guerra foi objecto de um tratado e não tem por isso nada a devolver.

A princípio ditada por motivos sociais e económicos, a revolta, protagonizada pela maioria indígena, acabou por fazer da questão do gás uma bandeira. Contra o projecto do Governo de vender a maior parte da produção gasífera nacional aos Estados Unidos e México, através de portos chilenos, a oposição passou a exigir que enquanto houver lares bolivianos sem gás ele não vai para mais lado nenhum, muito menos através de um território que há mais de cem anos perdeu para o vizinho. O motim acabou com a renúncia do chefe de Estado mas o anseio nacionalista passou para a agenda do sucessor e das relações com o vizinho, que ficaram piores.

No Chile é comum ouvir dos turistas que visitam a Bolívia que são ali mal olhados ou recebidos com hostilidade. Os dois países não têm relações diplomáticas desde 1978, precisamente devido ao diferendo fronteiriço, sendo as relações bilaterais regidas por representações de negócios - com muita gente, aliás, na capital do outro. Nos últimos meses, na cimeira ibero-americana de Novembro, em Santa Cruz de la Sierra, e mais recentemente na das Américas, em Monterrey, no México, a questão voltou à tona, com os dois lados irredutíveis nas suas posições.

Os bolivianos exigem o "soberano acesso ao mar", e tentam levar o problema aos fóruns multilaterais. Os chilenos respondem que as actuais fronteiras são as constantes no Tratado de Paz e Amizade de 1904, que além disso concede uma série de direitos aos antigos titulares, todos a serem cumpridos, dispondo-se até a discutir o assunto desde que ele não ponha em causa a sua soberania sobre os territórios em questão. Os parlamentos dos dois lados votaram declarações específicas de solidariedade institucional com os respectivos chefes de Estado.

A cupla foi do salitre
O desaguisado tem 125 anos, desde o fim da Guerra do Pacífico - alguns autores preferem chamar-lhe do "Salitre", por ter sido a sua exploração que desencadeou as hostilidades -, que começou no dia 14 de Fevereiro de 1879 e durou até 1883.

Durante anos o deserto de Atacama, a Sul da Bolívia e a Norte do Chile, seco e hostil, foi pouco apreciado pelos dois países, até que foram ali descobertas importantes jazidas salítricas - substância usada na fabricação de pólvora e fertilizantes agrícolas. Houve acordos de limites. La Paz aceitou que empresas mineiras chilenas - na sua maioria, curiosamente, de capitais estrangeiros, por exemplo ingleses -, se instalassem na região, comprometendo-se a não aumentar as suas contribuições durante 25 anos. Uma dessas unidades foi a Companhia do Salitre de Antofagasta.

Mas o Presidente boliviano que aprovou aqueles acordos, Tomás Frías, foi derrubado, em 1879, por um general, Hilarión Daza, que decretou um novo imposto sobre cada quintal de salitre exportado, prestação que a CSA se negou a pagar. O novo dirigente ordenou em consequência o embargo e venda em leilão da empresa, ao que se seguiu o envio, pelo Chile, de soldados para proteger a fábrica, a declaração, pela Bolívia, da guerra ao invasor, e finalmente a intervenção do Peru, que a ela estava ligada desde 1872, por um tratado de defesa mútua. E foi a guerra dita do Pacífico.

Depois de quatro anos e 23 mil mortos dos três lados, o Chile, o vencedor, ficou com os territórios de duas províncias peruanas, Arica e Tarapacá, e uma boliviana, Antofagasta, que dava à antiga dona acesso ao mar, soberania confirmada por um pacto de trégua, em 1884, e legitimada um quarto de século mais tarde pelo Tratado de Paz e Amizade de 1904, ou seja, a sua superfície, que era de 576 mil quilómetros quadrados, passou para 756 mil quilómetros quadrados. São estes territórios que os bolivianos gostariam de reaver, com os actuais proprietários a dizerem que tratados são tratados.

Além disso, diz Santiago, o que a Bolívia quer, já tem: o tratado que consagrou as novas fronteiras firmou igualmente uma série de compromissos favoráveis aos bolivianos, entre meios de transporte, agências aduaneiras, isenções de taxas, a possibilidade de exportar o gás que quiser sem ter de pagar impostos por isso.

"Claro, a bandeira continuará a ser a chilena, quer dizer, se alguém exceder aí o limite de velocidade vai receber uma multa por isso dada por um polícia chileno. Tudo o mais é vosso", respondeu Lagos ao homólogo boliviano, Mesa, quando este suscitou o problema na cimeira de Monterrey, acrescentando que o problema boliviano pode ser resolvido no âmbito da integração regional.

Mas La Paz não quer saber e, entusiasmada com palavras de compreensão vindas do antigo Presidente norte-americano, Jimmy Carter, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e o ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil, Celso Amorim, ordenou uma ofensiva diplomática para sensibilizar a comunidade internacional sobre a tese boliviana, operação que está a decorrer.

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